Conto de Natal



Em Dezembro de 2012 decidi escrever, fotocopiar, dobrar e agrafar um conto para oferecer à família e aos amigos mais chegados. Oferecidos os vinte e cinco exemplares em papel, deixo o ligação para o conto em formato pdf. Assim chega a todos.
Link: http://goo.gl/ppkQu

PS: a capa, assim como toda concepção gráfica, é da Elsa Brandão Martins

O que os outros disseram por mim #6

1 de Junho,
Porque é que as pessoas assumem poses e «armam» em dândis, ou cépticos, ou estóicos ou ainda «sans-souci» [distraídas] etc.? Porque sentem que há uma superioridade no enfrentar a vida segundo uma força, uma disciplina que podemos impor, pelo menos, aos nossos pensamentos.
É de facto aqui que reside o segredo da felicidade: assumir uma atitude. um estilo, um molde onde vão cair e caldear-se todas as nossas impressões e expressões.
Toda a vida vivida segundo um modelo corrente, compreensivo e vital, é clássica.

Cesare Pavese em Ofício de Viver 

Um breve comentário sobre a beleza de Luiz Pacheco


Quanto mais leio Luiz Pacheco, mais compreendo que ele, no meio de muita palha que escreveu, é, talvez, o escritor português do século vinte que melhor consegue a beleza. Especialmente porque a beleza das imagens criadas pelo Pacheco reluzem no meio da tristeza e dureza da vida (da sua vida). Não é apenas a da literatura (que nada tenho contra), a beleza que nasce do génio literário de quem a escreve. Esta é uma outra beleza, de outra ordem, de outra natureza, como se lê neste excerto de Uma Admirável Droga:
Ao nosso Z.Q. tinha morrido a mãe em Bucelas, na que é agora a Casa do Povo da vila.
(…)
Pela manhã cedo, Q. veio a Lisboa trazer algum dinheiro, pois tinha deixado a filha pequenita e a Emília se nenhum. Voltou, caiu em cima da cama, a criança ainda dormia no berço ao lado. Disse-lhe: “Morreu” (a minha Mãe). Guerreiro derrotado, amarfanhado mais que cansado.
A Emília, nos seus 15 anos, não sabia que lhe dizer. Não tinha leituras, nunca vira no teatro ou cinema da sua aldeia lances melodramáticos para aquelas situações que pudesse ali refigurar. Olhava-o compungida. Flor da terra, só o seu amor por ele, o desgosto de o ver assim, a podiam impulsionar, sabia que ele gostava (já tentara sem conseguir) que ela beijasse e chupasse a pilinha. Lembrou-se de súbito. Sem palavras, o Q. de olhos fechados, levantou a roupa da cama, desapertou o cinto, puxou as calças para baixo, curvou-se, beijou o caralho encolhido, e mais e mais. Ela a olhar espantada. E devagarinho, chupou, lambeu, beijou, na maior piedade, sem sensualidade carnal, só boca calada a transmitir a tristeza, consolo, um companheirismo, coragem para enfrentar a Morte. A Emília não saberia dizer tanto. Fazia. O Z.Q. ficou com uma grande admiração, consideração, paixão casta por ela. Esteve um bocado naquilo, até que, sem desejo a agarrou e já percebendo tudo, identificando o gesto, a puxou para cima, para o seu lado e choraram ambos, as caras encostadas um ao outro. Vencidos mas amantes. Bichos tão puros e tão frágeis. Tão calhados um para o outro. 

Das parábolas, a partir de Kafka


Pequena Fábula
«Ai de mim», disse o rato. «O mundo está a ficar cada dia mais pequeno. Ao princípio era tão grande que eu tinha medo, estava sempre a correr, e fiquei contente quando finalmente vi paredes lá ao longe, à esquerda e à direita, mas estas longas paredes estreitaram-se tão depressa que eu agora estou já no último compartimento e ali no canto está a ratoeira para a qual sou obrigado a correr.» «Só precisas de mudar de direcção, disse o gato que logo o engoliu.
Franz Kafka em Contos 


Isto, para além de uma fábula, é uma parábola.
Uma parábola que valia para os tempos do Kafka e vale para os tempos que vivemos hoje. Intemporal, portanto. É a natureza humana, diz-me o génio malvado que tenho pousado no meu ombro direito.

Nas parábolas, naquelas com bichos, há um indivíduo de uma espécie que trama um indivíduo de outra espécie. Isso sempre me fez confusão, porque as coisas não são assim. Por exemplo, nesta parábola do Kafka, o rato devia ser comido por outro rato, oportunista e mais esperto.

Obviamente que cairia do pecado da literalidade, mas seria mais fiel à realidade que está lá fora à nossa espera.

Da escrita e do boxe, do boxe e da escrita


Já li muito sobre o processo de escrita. Li centenas de entrevistas de escritores, li algumas dezenas de livros ou artigos sobre escrita. Li para aprender, li para saber o que me espera. De todos os que li, nenhum me ensinou tanto como um ensaio sobre Boxe de Joyce Carol Oates  - curiosamente, ela é também autora de um livro sobre escrita que li em tempos idos. O ensaio chama On Boxing (Boxe na versão portuguesa, aquela que li). A passagem que me iluminou, diz isto:
“O artista sente alguma afinidade, embora oblíqua e parcial  com o pugilista profissional, nesta questão do treino, desta fanática subordinação do ser aos desígnios de um destino desejado.
[...]
Se isto é masoquismo – e duvido que seja, ou que o seja apenas – é também inteligência, astúcia, estratégia. É um acto de perfeita autodeterminação – o constante restabelecimento dos parâmetros do ser.
Não apenas aceitar, mas provocar activamente, o que a maior parte dos humanos normais evitam – dor, humilhação, perda, desordem – é viver o momento presente, num certo sentido, como tempo passado. Aqui e agora é somente parte do projecto do além e então: agora dor, mas controlo e, portanto, triunfo mais tarde.”
Está tudo dito.

Um conto de Rubem Fonseca

Vida

No meu caso sou alertado pelo ruído causado pelo movimento de gazes nos intestinos. Mas há pessoas que não são beneficiadas por esse sinal prodrômico – minha mulher diz que isso não é uma doença, e não sendo uma doença não tem um pródomo, como o aviso que um epilético recebe momentos antes de ter sua crise, como ocorria com o nosso filho, que Deus o tenha, mas minha mulher dedica-se a me contrariar em tudo o que digo, a me hostilizar constantemente, esse é o passatempo da vida dela –, mas eu dizia que a minha flatulência é anunciada por esses ruídos dos gases se deslocando no abdome, e isso me permite, quase sempre, uma retirada estratégica para ir expelir os gases longe dos ouvidos e narizes dos outros. Aliás, prefiro fazer isso isolado, pois os flatos ao serem expulsos dão-me um grande prazer que se manifesta no meu rosto, seu disso pois na maioria das vezes eu os libero no banheiro, o melhor lugar para fazê-lo, e posso notar na minha face, refletida no espelho, a leniência do alívio, a deleitação provocada por sua essência odorífera, e também uma certa euforia, quando são bem ruidosos. E, sendo um ambiente fechado, tenho outra emoção, talvez mais prazerosa, que é a de fruir com exclusividade esse odor peculiar. Sim, eu sei que para a maioria das pessoas – certamente não para quem o expeliu – o aroma da flatulência alheia é ofensivo e repugnante. Minha mulher, por exemplo, quando estamos deitados na cama e ela ouve o barulho dos meus intestinos, grita comigo, sai da cama e vai peidar longe de mim, seu nojento. Saio correndo da cama e vou para o banheiro, nessas ocasiões, como já disse, prefiro ficar sozinho, e após expelir os gases no banheiro, como a porta fechada, quando nem acabei de gozar a satisfação que aquilo me propicia, ela grita do quarto, meu Deus, estou sentido o fedor daqui, você está podre mesmo. O cheiro não é tão forte assim, eu até que gostaria que fosse mais intenso pois me daria maior prazer, mas às vezes é tão suave que tenho que me curvar e fungar com o nariz quase colado no púbis para sentir o aroma desprendido pelo flato, mas mesmo assim, nesses dias ela grita palavras injuriosas do quarto, como se o odor tão fraco pudesse fazer o percurso tão longo sem esvaecer pelo caminho. Outro dia, no jantar, aliás isso ocorre quase todos os dias, ao repetir o prato de feijão, ela disse, come mais, enche as tripas, para depois peidar mais forte, mas ela diz a mesma coisa se repito a sobremesa, sou magro e não consigo deixar de ser magro, não importa o que eu coma, ela é gorada e não consegue deixar de ser gorda, mas vive fazendo tortas, pudins de leite e musses de chocolate, e se repito o pudim ou a musse ela diz, você vai passar a noite peidando como um cavalo, e ainda por cima ela me culpa de ser gorda, que a faço infeliz e ela come para compensar as frustrações causadas por mim, e ela tem razão, pois não consigo cumprir as minhas obrigações de marido, por mais que tente, e na verdade já nem tento mais. Eu poderia sair de casa, pedir o divórcio, mas lembro o que ela sofreu durante a doença de nosso filho, acho que nunca existiu no mundo mãe mais dedicada, e ela ficou gorda depois que nosso filho morreu, e às vezes eu a surpreendo chorando com o retrato dele na mão, e eu não devo abandona-la nessa situação, não posso ser tão desalmado e egoísta, e ainda mais sendo magro e elegante poderia arrumar outra mulher, mas ela não conseguiria arranjar outro homem e a solidão aumentaria ainda mais e seu sofrimento e ela é uma boa mulher, não merece isso. Estamos deitados, ela de costas para mim, pensei que estivesse dormindo, meus intestinos começaram a produzir borborigmos e ela, sem se virar, gritou ai meu Deus que vida a minha, vai peidar no banheiro, e eu fui e fiz o que ela mandou e contemplei no espelho a felicidade que o forte ruído e o intenso odor estampavam no meu rosto.

"Vida", Rubem Fonseca, Secreções, Excreções e Desatinos

Antologia Pessoal #6


Encontrar um poema de um verso
uma palavra
um motivo de silêncio

um clarão de esperança
ou uma ideia bem negra

pegar e deitar fora
assobiar
seguir viagem


Rui Caeiro em Sobre a Nossa Morte, Bem Muito Obrigado

O que os outros disseram por mim #5

"I don’t think you can be content when there is so much wrong in the world. I think you do have to strive to keep awake to all the things I was talking about earlier. Nature will always inspire me, it’s great just to see a robin sometimes, there are such miraculous little things in the world. In day-to-day life you can quite easily become not as connected as you have been in the past, so there is always a feeling within me that I need to stay awake to the full picture, no matter what the distractions."

Bill Fay em A Conversation with Bill Fay by Robert Leeming

Da decadência


Em tempos achei que existia romantismo na decadência. Que era fixe ser decadente, não ter onde dormir, não ter dinheiro, beber em balcões de bares a meia-luz, foder muito, nem sempre bem, com mulheres que choram arrependidas no dia seguinte. Admirava o sujo e o imperfeito. Eram tempos em que lia Bukowski e Henry Miller e julgava que era isso que queria para mim. Depois cresci, percebi a mediocridade de tudo isso, e mudei de ideias.
Sem saber muito bem como, no último ano dei por mim em situações análogas às que lia nesses livros e isso é uma derrota. Defini a beleza como objectivo de vida e ela, com honrosas excepções, tem escasseado. Não sei o que fiz de errado, mas creio que é tempo de voltar aos filmes e à música dos anos cinquenta. Foi lá que encontrei a inspiração para os momentos mais belos da minha vida. É lá que irei buscar inspiração para fugir a este período decadente, sujo e feio.

Antologia Pessoal #4


"nem no acaso a culpa falha"



A praia


Quando era miúdo, a praia era o meu paraíso. Era onde era mais feliz. Saltava, jogava à bola, mergulhava, brincava, escavava, conhecia outros miúdos e brincava com eles dentro de água, ignorando tudo e todos. Era mesmo o meu paraíso. No Inverno contava os meses para o Verão. Contava mesmo. Adorava aquilo.
Já adulto, ou quase, quando passei a ir para a praia com a minha ex-namorada, isso quase mudou. Para ela a praia representava outra coisa. Ela gostava muito de praia, mas para chegar, deitar-se na toalha e dormir. De vez em quando levantava-se e mergulhava. Regressava depois à primeira forma e deitava-se na toalha a dormir (quase sempre) ou a ler (quase nunca).
Eu sentia-me muito sozinho e aborrecido. Nunca lho disse, mas era assim que me sentia. Cheguei, por vezes, a sentir-me a pessoa mais sozinha do mundo (sou exagerado).
A praia quase que perdeu a magia que tinha para mim. Não deixei que perdesse. Não deixei que perdesse então, não deixarei que perca agora. A magia terá que permanecer, custe o que custar. Na praia quero ser um puto.

Antologia Pessoal #3

"eu disse «me lave a cabeça, eu tenho pressa disso», e então, me tirando do foco da ducha, suas mãos logo penetraram pelos meus cabelos, friccionando com firmeza os dedos, riscando meu couro com as unhas, me raspando a nuca dum jeito que me deixava maluco na medula, mas eu não dizia nada e só ficava sentindo a espuma crescendo fofa lá no alto até que desabasse com espalhafato pela cara, me alfinetando os olhos na descida, me fazendo esfregá-los doidamente com o nó dos dedos, ainda que eu soubesse que eles, ardendo, anunciavam francamente o meu asseio, e não demorou ela me puxou de nova sob a ducha, e seus dedos começaram a tramar a coisa mais gostosa do mundo nos meus cabelos co'a chuva quente que caía em cima, e era então um plaft plaft de espuma grossa e atropelada, se espatifando na cerâmica co'a água que corria ruidosa para o ralo, e ela ria e ria, e eu ali, todo quieto e largado aos seus cuidados, eu sequer mexia um dedo pra que ela cumprisse sozinha esse trabalho, e eu já estava bem enxaguado quando ela, resvalando dos limites da tarefa, deslizou a boca molhada pela minha pele d'água, mas eu, tomando-lhe os freios, fiz de conta que nada perturbava o ritual»

Raduan Nassar em Um Copo de Cólera

Da raiva

Tenho muito medo da incompreensão e por isso me torno tão palavroso em situações limites. Falo muito, tento explicar o meu ponto de vista de diversas formas, uso e abuso dos exemplos simbólicos. Normalmente o resultado é inverso ao que devia ser: torno-me ainda mais incompreendido. Depois, bem, depois… Depois chega a frustração de não me fazer compreender e a explosão de raiva. E todos sabemos como somos menos bonitos enraivecidos. Eu não fujo à regra. Enraivecido sou uma besta, calmo sou todo bondade. O contraste é grande, demasiado evidente. Por isso é preciso uma dose forte de paciência para suportar. Tão forte que ninguém a tem. Nem eu.

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